Roraima: onde as complexidades vão além de um fluxo migratório
Dona Raimunda vive em Boa Vista desde 1983, vinda de Manaus. Como muitos de seus conterrâneos, “veio para conhecer e nunca mais voltou”. O discurso dela é de uma complexidade que só Roraima parece carregar.
Numa conversa informal no Centro de Artesanato da cidade, ela reclama para mim de como a população Venezuelana mudou a vida dos habitantes de Boa Vista. “Antes a gente dormia até de janela aberta por aqui. Agora a gente vive agarrado na bolsa.” Menciona o abandono do governo para com “o paraíso” que escolheu chamar de lar e diz ter esperanças de melhoras com “esse novo [governo] que assumiu agora”. Elogia a presença do exército na rua e diz que sem eles “só falta te roubarem dentro do banco”. Ainda narra inúmeros casos de violência na capital e os atribui 100% aos novos imigrantes.

Ao mesmo tempo, narra com compaixão a história da família Venezuelana que mora na sua rua. Fala com ternura de uma mãe, um pai e três filhos que dividiam um colchão só e ainda assim pagavam o aluguel com dificuldade. Doou um colchão da casa dela para eles terem mais conforto para dormir. Disse que ajudou com tudo o que pôde e que seu filho inclusive conseguiu um emprego para o pai em uma sorveteria.
Raimunda também conta da sopa que eles insistem em levar na casa dela em agradecimento pela ajuda toda, apelidado pelos netos de “caldo das irmãs Venezuelanas”. “Mas a comida deles é muito diferente, sem tempero, não gosto muito não”, confessa.
Se compadece com a fome e miséria que chega da Venezuela e diz que não aguenta ver as mães e bebês de colo que chegam. Nem se conforma com as senhoras de idade que cruzam a fronteira carregando o que podem nas costas. Chama Maduro de “Doido de lá” e espera que a situação melhore do outro lado da fronteira. “Olha, eu não desejo isso nem ao meu pior inimigo”. E lamenta completando com a frase, “A Venezuela é igual a Roraima, é rica igual”.
Dona Raimunda é o retrato de quem se vê acuado pelas mudanças que o fluxo de gente traz. Nas próprias palavras dela “com o progresso vêm as consequências”. O discurso dela também é a encruzilhada de quem se identifica na imagem do migrante que viu em Roraima uma perspectiva de lar. “O pai ou tio do meu vizinho veio da Venezuela para cá e foi para Manaus. Depois voltou pra cá. Aqui é bom demais, eu mesma não volto mais pra Manaus”, comenta quase num orgulho de saber que a terra que escolheu amar também é amada por outros que vem de fora.
O universo particular que permeia a capital Roraimense só é possível de ser explicado ao olhar nos olhos manauaras e intensos desses que nutrem um amor por uma terra onde não nasceram e ainda assim não se veem migrantes. Desses que têm medo de perder o seu “paraíso” ao abrir espaço para o outro – que é tão parecido consigo. Não por egoísmo, mas exatamente por saber o como é dificil a luta para encontrar o seu lugar no mundo.
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