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Milagros: a voz do povo Waraó em terras Brasileiras

Milagros tem a voz doce que só alguém com esse nome poderia ter. Seu sorriso e tranquilidade no olhar quase escondem a dor e angústia que me narra casualmente enquanto assiste ao ensaio do Coral Canarinhos da Amazônia no qual sua filha, Rosa Mística, canta.

Ela fala da vida do outro lado da fronteira em detalhes. Os horrores pelos quais a sua família passou são difíceis de ouvir. E não surpreende que ela aprecie tudo no novo cotidiano Brasileiro em que eles estão vivendo. As coisas mais simples passam despercebido do lado do privilégio, como poder fazer refeições regulares ou lavar a roupa dão para a família um senso de normalidade de novo.

O jeito dela encarar a vida e como se diz agradecida por ter sido recebida no país que chamo de lar só me faz pensar em como Milagros foi, de fato, um milagre na minha vida. Conhecê-la e ouvir suas experiências e história me fez colocar todos os meus valores em perspectiva. Me fez entender a força e persistência de um povo que é forçado a migrar. Também me fez compreender a dimensão do que é ser privado todos os direitos humanos básicos, como alimento, itens de higiene pessoal e o direito à dignidade. E, ainda assim, continuar lutando, vivendo um dia após o outro sem nunca perder a fé na vida. A conversa com Milagros foi uma benção que eu nunca vou esquecer e eu compartilho a trajetória dela aqui na esperança de passar um tanto da energia que ela me passou.

“Quando chegamos aqui dentro, encontramos muita comida. É como dizer que, bem…eu chorei quando vi bastante comida. Minhas filhas se alegraram e disseram ‘mami, tem muita comida aqui’”

Milagros faz parte de uma das centenas de famílias de indígenas Waraó que deixou a região do baixo delta na Venezuela para chegar ao estado de Roraima. A viagem definitivamente só pode ser feita inspirada pelo desespero de sair do pesadelo em que se encontram. “Viemos de lá sem comer. Passamos dois dias, um em San Félix e outro em Santa Elena. Em Santa Elena passamos um dia completo porque não tínhamos como chegar até aqui no Brasil”, fala lembrando da fome que não deixava a sua família na Venezuela. “Meus filhos choravam. Me pediam, ‘Mami, porque papai não nos compra algo para comer?’ e não tínhamos como comprar. O que podíamos falar? Só Deus. Tinha fé”.

Ela ainda fala da emoção de quando finalmente conseguiu chegar a divisa de países e encontrou um bem que já fazia falta há tempo: comida. “Quando chegamos aqui dentro, encontramos muita comida. É como dizer que, bem…eu chorei quando vi bastante comida. Minhas filhas se alegraram e disseram ‘mami, tem muita comida aqui’”, narra com a intensidade que só uma mãe que já viu os filhos passarem fome pode ter.

Também me descreve as dificuldades das atividades cotidianas para que eu entenda a insustentabilidade da situação. “Como a gente fazia para lavar a roupa? A gente esquentava a água em uma panela grande e deixávamos lá por 20 minutos. Depois a gente tirava e passava água fria. Ficava meio lavado, mas a gente tinha que usar assim”.

O tom da voz dela e a sinceridade no olhar não abrem espaço para desconfiança. “Falar, pensar na Venezuela, na situação que passamos é horrível, uma tristeza. De verdade, quando falamos da nossa terra, nos dá vontade de chorar. Muita gente não passa por isso, mas eu passei e o que estou te contando é verdade”.

O sentimento agora em terras Brasileiras, no entanto, é bem diferente. A gratidão de ter podido cruzar a fronteira e ser recebida em Pacaraima é evidente durante a conversa. Me afirma diversas vezes o quanto se sente feliz em ter mudado a realidade em que vivia. “O destino que passávamos lá [na Venezuela] mudou muito, graças a Deus e às terras do Brasil. Eu me sinto muito feliz porque nunca pensei que fosse chegar aqui e aqui estamos, com muito sofrimento mas chegamos”, conta. “Aqui eu estou contente e muito feliz”, diz com sinceridade.

Por fim, me expressa o seu maior desejo: “Que as coisas mudem na Venezuela. Desejo eu, de coração, que chegue um presidente bom que mude todas essas coisas que a gente tinha na Venezuela, para que seja possível regressar. Porque assim, do jeito que está, não posso voltar. Está um inferno lá”.

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